domingo, 1 de fevereiro de 2009

P088-Os mortos ao nosso lado...

O que sentimos quando os vimos cair ao nosso lado, abatidos a tiro ou despedaçados com rockets ou minas... O João de Melo sentiu assim em Angola, como diz no seu livro "Autópsia de Um Mar de Ruínas". Na Guiné não foi diferente. As ruínas até foram maiores... cada um de nós sabe. Em vez de Amaral eu posso falar em Carlos, em vez de Cláudio posso dizer António. Todos temos nomes. Todos sabemos da loucura que nos deu na altura da morte deles.

«…Sabem como são os mortos? Ei-los dormindo boquiabertos e com as pálpebras enormemente esticadas: alguns têm a morte no ventre, outros nos dedos muito grossos, e são como os palhaços adormecidos entre dois números de circo ou no intervalo que separa o riso da sua infinita desgraça interior. O cadáver do soldado Amaral observava o circo e devia pensar que o mundo se enchera já de tudo o que não servia para nada. Eu saltara por cima dele, e senti que a solidão da eternidade me dava uma dentada na cabeça do pénis. Ouvi perfeitamente o meu grito, o grito das minhas pernas enroladas no seu corpo, e detive-me apenas um instante a observar-lhe a testa com um tiro: alguém devia ter feito pontaria às sobrancelhas muito revoltas, pois uma miserável pena de pássaro fora decerto disparada, como a seta por um arco, e entrara fundo no espaço da sua cabeça. A estranha morte repetia-se assim: da parte da frente, quase não se dava por ela, uma mordidela distraída, o fracasso ligeiro de um corno de peixe-agulha e nada mais. Porém, do lado de trás, ao centro da nuca do soldado Amaral, uma cratera com ovos abrira tudo: esguichavam bolas de sangue, miolos vomitados, rolos de cabelo misturados com esquírolas e lascas de couro. E então eu soube que estava no mais horrível momento e que toda a memória da minha vida tinha entretanto desaparecido.
Quem era eu?, pensei. Nunca estivera em outro qualquer lugar do mundo. Apalpava o meu corpo com as mãos incrédulas, e ele já não existia; tinha-me esquecido de todas as suas formas ainda há pouco familiares, precisava de ir à procura dele, recuperá-lo depressa, regressar com ele ao mundo de que nos havíamos perdido. Encontrado o corpo, corri por dentro dele, obriguei-o a mover-se para diante, ao encontro dos outros mortos, e os meus músculos eram manivelas, roldanas, estranhas rodas-dentadas ligadas a pequenos rodízios com ferrugem.
Quem sou eu?, pensei de novo. Quem sou eu, para ter de olhar o peito aberto do soldado Cláudio, as suas pernas abertas e flectidas, o olhar de virgem violentada no meio do canavial? Não sou capaz, não vou ser nunca capaz de contar os ossos, o rasgão dos punhais que tinham mordido muito fundo os seus pulmões. Não vou ser capaz de olhar e ver o modo como o granada estremeceu e estoirou as aduelas inúteis das costelas, varreu por dentro as migalhas dos miúdos ossos sem nome e acabou por anichar-se-lhe no estômago. Morde bem a língua, meu menino; fecha bem as mãos e agarra as madeixas de capim; espreme toda a esperança da terra e aperta o saco do teu corpo, onde guardarás as estrelas, as dragonas, o monóculo, o pingalim dos generais da tua guerra…
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